Eles insistem em criar os filhos sem limites ou frustrações, tudo
permeado pelo prazer absoluto. O problema é que a vida não é assim...
por Leonardo Posternak
João, de 6 anos, está caminhando de mãos dadas com seu pai. Acabou de
ter uma violenta briga com seu amigo do coração, por motivos banais de
desentendimentos em uma brincadeira. Pai e filho vão calados,
resmungando. De pronto o menino pergunta ao pai: ‘O que é a liberdade?’
Ele queria compreender o que tinha acontecido. O pai, preocupado e
distraído, contesta rápido e impensadamente: ‘É fazer o que a gente
quer’. João escuta pensativo e olhando nos olhos do pai interpela: ‘Ah!
Mas não com os outros, né?’”
Pequena e profunda, essa história levanta várias articulações: entre o
sujeito e o outro, entre a pulsão e a ética, entre o desejo e o limite,
entre a liberdade e o direito. Nos faz pensar que tão importante quanto
educar é não deseducar. O exemplo é o âmago do texto que segue a
continuação.
É lícito que cada família eduque seus filhos embasada em sua história,
seus modelos, sua cultura, sua experiência e suas possibilidades. Talvez
seja por isso que a educação das crianças se torne um fator instigante
para a reflexão interdisciplinar e demande uma relação estreita entre a
família, a escola e a pediatria. Mas existe um aspecto universal da
educação que podemos sintetizá-lo em duas perguntas: o que esperar da
educação que damos aos nossos filhos? E o que podemos lhes transmitir?
A resposta teórica deve ser quase unânime: basicamente, devemos lhe
oferecer ferramentas para sua socialização. Transmitir-lhes uma
cidadania possível. A resposta, na prática cotidiana, perde a
unanimidade, e as certezas viram dúvidas ou impasses. Justamente por não
ser o resultado mágico de um ritual – na nossa cultura não existe um
ato simbólico que introduza a criança no estatuto do adulto. Ou o
aprendizado através de um manual. Do tipo: “Como educar seu filho em dez
capítulos”. A educação para cidadania se dá por caminhos longos,
incertos dentro de um equilíbrio instável entre a esperança (promessas) e
frustrações (deveres).
Quando se trata de educar, de maneira imediata e estereotipada, se faz
presente uma contradição entre o excesso e a falta de algo que não
sabemos bem o que é. E assim coloca os pais e educadores em dúvida em
respeito à medida “desse algo” desconhecido. Podemos exemplificar esse
conceito: crianças bem educadas/crianças mal-educadas, crianças
abandonadas/superprotegidas, repressão demais/ repressão de menos,
crianças que têm tudo/crianças que não têm nada. Bater, acariciar,
castigar, prometer. Prevalecer sem humilhar, manter a autoridade sem
autoritarismo. Permitir o prazer sem perder a disciplina, manter a
disciplina sem perder prazer. O que fica de tudo: lógica demais,
informação de menos ou demasiada informação sem lógica.
O ponto de partida dessa contradição é o fato de os pais terem que
transmitir a demanda social, além de seu desejo. Ao mesmo tempo, a
sociedade e a cultura exigem que os pais encaminhem seus filhos pelos
caminhos limitados, pelas normas, convenções sociais e leis de sua
conveniência. A isso se chama educar. Sigmund Freud há mais ou menos cem
anos escreveu sobre o assunto ao falar do narcisismo em um trabalho
intitulado Sua Majestade, o Bebê. Nela, Freud afirma que os pais almejam
para seus filhos o prazer, a realização e a felicidade que muitas vezes
eles mesmos não conseguiram para si próprios.
Os pais insistem em criar os filhos sem limites, sem frustrações, tudo
permeado permanentemente pelo prazer absoluto e com imensa proteção,
como se pudessem criar uma exceção para seu “reizinho”. O problema é que
ficam reféns da demanda social.
O paradoxo fica ainda mais terrível e perigoso se os pais não
conseguirem entender que os indivíduos e as famílias estão imersos em
comunidades. Não são ilhas isoladas e paradisíacas, com leis próprias.
Podemos reconhecer outro paradoxo antipedagógico nas famílias modernas:
sem questionamento, se apropriam dos princípios da revolução francesa
para seu funcionamento: “Igualdade, fraternidade e liberdade”.
O justo clamor popular, ante a um reinado autoritário e injusto, se
torna algo devastador ao se tratar da educação dos filhos. A família
deve ser hierárquica, não um sistema igualitário, e deve funcionar com a
necessária autoridade dos pais. A família não é composta só de irmãos:
os elementos são diferentes e os pais são guardiães das normas de
funcionamento. Por último, a liberdade não é libertinagem. Qual a medida
da liberdade? Deve-se permitir que a criança faça tudo o que quiser?
Não, jamais. Os pais têm de optar em ser adultos – alguém tem de fazer
isso. Para uma criança querer crescer, tem de existir o desejo, e o
desejo só surge quando existe uma falta. As crianças que conseguem tudo
não têm motivo para crescer porque não têm nada a desejar.
Nós, humanos, ao nascer estamos influenciados pelo princípio do prazer,
somos hedonistas. No começo da vida assim deve ser: receber cuidados,
comida, amor para poder ficar seguros no Éden. Logo a seguir, a educação
e o relacionamento com os adultos amados nos introduzem no princípio de
realidade e assim perdemos o paraíso, porque alguém impõe limites,
provoca algum grau de frustração e corta os excessos. A educação se faz
apesar do desejo. Para a mãe, o desejo é de ser tudo para o filho e que o
filho seja tudo para ela. Nessa hora, deve aparecer a função paterna,
que é de corte entre a mãe e o filho. Na nossa cultura, para as
crianças, a bandeira da autoridade está na mão do pai. Se ele consegue
que a mãe não seja tudo para o filho e que ele não seja tudo para ela,
os dois vão precisar de outra coisa. Ou seja: a ação do pai os leva a
desejar. A educação então se faz não através do desejo, mas apesar dele.
Dá para imaginar os problemas que surgem quando o pai não tem condições
de assumir sua função e simplesmente se demite ou fica eclipsado. A
tarefa educativa não aceita a renúncia: sem o exercício de um dever, não
existe a promessa do gozo. O desejo humano só existe na medida em que
os limites impostos nos constituem em sujeitos culturais. Não sendo
assim, teríamos uma vida intuitiva movida pelos impulsos.
Como regra geral, os pais devem ter cuidado para não usar uma dupla
mensagem: não estimular a difundida lei macunaímica de ser espertos e
levar vantagem em tudo. Devem também falar sempre a verdade – é um
direito dos filhos –, ensinar a respeitar as diferenças etc. Este tema é
uma das últimas utopias que, pela sua nobreza, vale a pena lutar. Mudar
a criança na família, mudar a família na sociedade, é permitir então
que essas crianças mudem o mundo.
Eles insistem em criar os filhos sem limites ou frustrações, tudo
permeado pelo prazer absoluto. O problema é que a vida não é assim...
por Leonardo Posternak
João, de 6 anos, está caminhando de mãos dadas com seu pai. Acabou de
ter uma violenta briga com seu amigo do coração, por motivos banais de
desentendimentos em uma brincadeira. Pai e filho vão calados,
resmungando. De pronto o menino pergunta ao pai: ‘O que é a liberdade?’
Ele queria compreender o que tinha acontecido. O pai, preocupado e
distraído, contesta rápido e impensadamente: ‘É fazer o que a gente
quer’. João escuta pensativo e olhando nos olhos do pai interpela: ‘Ah!
Mas não com os outros, né?’”
Pequena e profunda, essa história levanta várias articulações: entre o
sujeito e o outro, entre a pulsão e a ética, entre o desejo e o limite,
entre a liberdade e o direito. Nos faz pensar que tão importante quanto
educar é não deseducar. O exemplo é o âmago do texto que segue a
continuação.
É lícito que cada família eduque seus filhos embasada em sua história,
seus modelos, sua cultura, sua experiência e suas possibilidades. Talvez
seja por isso que a educação das crianças se torne um fator instigante
para a reflexão interdisciplinar e demande uma relação estreita entre a
família, a escola e a pediatria. Mas existe um aspecto universal da
educação que podemos sintetizá-lo em duas perguntas: o que esperar da
educação que damos aos nossos filhos? E o que podemos lhes transmitir?
A resposta teórica deve ser quase unânime: basicamente, devemos lhe
oferecer ferramentas para sua socialização. Transmitir-lhes uma
cidadania possível. A resposta, na prática cotidiana, perde a
unanimidade, e as certezas viram dúvidas ou impasses. Justamente por não
ser o resultado mágico de um ritual – na nossa cultura não existe um
ato simbólico que introduza a criança no estatuto do adulto. Ou o
aprendizado através de um manual. Do tipo: “Como educar seu filho em dez
capítulos”. A educação para cidadania se dá por caminhos longos,
incertos dentro de um equilíbrio instável entre a esperança (promessas) e
frustrações (deveres).
Quando se trata de educar, de maneira imediata e estereotipada, se faz
presente uma contradição entre o excesso e a falta de algo que não
sabemos bem o que é. E assim coloca os pais e educadores em dúvida em
respeito à medida “desse algo” desconhecido. Podemos exemplificar esse
conceito: crianças bem educadas/crianças mal-educadas, crianças
abandonadas/superprotegidas, repressão demais/ repressão de menos,
crianças que têm tudo/crianças que não têm nada. Bater, acariciar,
castigar, prometer. Prevalecer sem humilhar, manter a autoridade sem
autoritarismo. Permitir o prazer sem perder a disciplina, manter a
disciplina sem perder prazer. O que fica de tudo: lógica demais,
informação de menos ou demasiada informação sem lógica.
O ponto de partida dessa contradição é o fato de os pais terem que
transmitir a demanda social, além de seu desejo. Ao mesmo tempo, a
sociedade e a cultura exigem que os pais encaminhem seus filhos pelos
caminhos limitados, pelas normas, convenções sociais e leis de sua
conveniência. A isso se chama educar. Sigmund Freud há mais ou menos cem
anos escreveu sobre o assunto ao falar do narcisismo em um trabalho
intitulado Sua Majestade, o Bebê. Nela, Freud afirma que os pais almejam
para seus filhos o prazer, a realização e a felicidade que muitas vezes
eles mesmos não conseguiram para si próprios.
Os pais insistem em criar os filhos sem limites, sem frustrações, tudo
permeado permanentemente pelo prazer absoluto e com imensa proteção,
como se pudessem criar uma exceção para seu “reizinho”. O problema é que
ficam reféns da demanda social.
O paradoxo fica ainda mais terrível e perigoso se os pais não
conseguirem entender que os indivíduos e as famílias estão imersos em
comunidades. Não são ilhas isoladas e paradisíacas, com leis próprias.
Podemos reconhecer outro paradoxo antipedagógico nas famílias modernas:
sem questionamento, se apropriam dos princípios da revolução francesa
para seu funcionamento: “Igualdade, fraternidade e liberdade”.
O justo clamor popular, ante a um reinado autoritário e injusto, se
torna algo devastador ao se tratar da educação dos filhos. A família
deve ser hierárquica, não um sistema igualitário, e deve funcionar com a
necessária autoridade dos pais. A família não é composta só de irmãos:
os elementos são diferentes e os pais são guardiães das normas de
funcionamento. Por último, a liberdade não é libertinagem. Qual a medida
da liberdade? Deve-se permitir que a criança faça tudo o que quiser?
Não, jamais. Os pais têm de optar em ser adultos – alguém tem de fazer
isso. Para uma criança querer crescer, tem de existir o desejo, e o
desejo só surge quando existe uma falta. As crianças que conseguem tudo
não têm motivo para crescer porque não têm nada a desejar.
Nós, humanos, ao nascer estamos influenciados pelo princípio do prazer,
somos hedonistas. No começo da vida assim deve ser: receber cuidados,
comida, amor para poder ficar seguros no Éden. Logo a seguir, a educação
e o relacionamento com os adultos amados nos introduzem no princípio de
realidade e assim perdemos o paraíso, porque alguém impõe limites,
provoca algum grau de frustração e corta os excessos. A educação se faz
apesar do desejo. Para a mãe, o desejo é de ser tudo para o filho e que o
filho seja tudo para ela. Nessa hora, deve aparecer a função paterna,
que é de corte entre a mãe e o filho. Na nossa cultura, para as
crianças, a bandeira da autoridade está na mão do pai. Se ele consegue
que a mãe não seja tudo para o filho e que ele não seja tudo para ela,
os dois vão precisar de outra coisa. Ou seja: a ação do pai os leva a
desejar. A educação então se faz não através do desejo, mas apesar dele.
Dá para imaginar os problemas que surgem quando o pai não tem condições
de assumir sua função e simplesmente se demite ou fica eclipsado. A
tarefa educativa não aceita a renúncia: sem o exercício de um dever, não
existe a promessa do gozo. O desejo humano só existe na medida em que
os limites impostos nos constituem em sujeitos culturais. Não sendo
assim, teríamos uma vida intuitiva movida pelos impulsos.
Como regra geral, os pais devem ter cuidado para não usar uma dupla
mensagem: não estimular a difundida lei macunaímica de ser espertos e
levar vantagem em tudo. Devem também falar sempre a verdade – é um
direito dos filhos –, ensinar a respeitar as diferenças etc. Este tema é
uma das últimas utopias que, pela sua nobreza, vale a pena lutar. Mudar
a criança na família, mudar a família na sociedade, é permitir então
que essas crianças mudem o mundo.
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